Dizem
que os mortos não sentem nada. É mentira: eu estou morto e sinto raiva. Sim,
morre-se um pouco todos os dias e deixa-se a alma fatiada. Estou com raiva.
Raiva de mim e do mundo. Porque eu não sou o que gostaria de ser e o mundo não
é aquilo de que eu gostaria que fosse. Ah, eu poderia voltar agora mesmo à
vida, mas esse lugar fúnebre está mais calmo. O mundo é agitado lá fora. Por
enquanto eu morri. Mas também não quero morrer para sempre. Morrer dói, assim
como viver.
Olhe
para você. Você já se perguntou o que está fazendo de si? Não? É porque ainda
está vivo. Depois que morrer e enxergar as coisas do outro lado começará a se
questionar. E quando se começa o questionamento é porque não estamos bem. Eu
sei, existem dores que escondemos de nós e só depois que se morre é que as
percebemos. Eu morri para ontem, para hoje e para agora. Amanhã talvez eu viva.
Ou eu dê à luz. E, nesse caso, eu estaria sendo responsável por algo ou alguém
que conhecerá a vida e a morte: é muita responsabilidade. Por uma questão de
segundos, estamos condenados, pois a vida é sempre um risco: o de morrer.
Eu
conheci uma mulher que a chamavam de feia e por isso diziam que ela havia
morrido e tinham se esquecido de enterrá-la. Como os mortos podem se atrever a
julgar outros mortos? Uns se sentem mais superiores porque não estão em baixo
de sete palmos de terra. Mas são tolos, porque também estão mortos. E são os
piores mortos, assim como eu: aqueles que morrem e continuam vivos.
Até
escrever é uma forma de morrer: por definhamento. Escreve-se tanto que se acaba
a vida. É uma drenagem da vitalidade. Sim, é preciso também drenar a vida,
porque viver demais é sufocante. Felicidade é preciso beber aos goles
moderados, do contrário morrer-se engasgado. Por isso é preciso morrer para
viver. Viver é um pote sem fundo que nunca se enche. A morte é um pote com
fundo. É preciso morrer para encher o pote. Depois, cansa-se do líquido e
quer-se viver novamente: de volta ao pote sem fundo. E depois se morre e depois
se vive.
Nem
pote para encher eu tenho. Eu acho que agora eu já estou num certo ponto que me
situo entre a vida e a morte. E ninguém nunca esteve entre a vida e a morte: já
se esteve à beira da morte, o que é diferente. Eu estou num estado do que já
não é mais coisa morta nem coisa viva: ser inanimado, mas de existência
própria. Será que isso é terrível e seria a dor maior do mundo: não viver nem
morrer? Eu já não sei, porque se chega a um ponto em que não há mais vida nem
morte: existe-se. E tudo existe. Até o que não se existe passa a se existir
pelo simples fato de se falar na coisa: as palavras fazem o ser.
Isso
já é suficiente, eu suponho. Preciso me definir: eu morri. Mas é temporário.
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