sábado, 16 de dezembro de 2017

Eu Morri

Dizem que os mortos não sentem nada. É mentira: eu estou morto e sinto raiva. Sim, morre-se um pouco todos os dias e deixa-se a alma fatiada. Estou com raiva. Raiva de mim e do mundo. Porque eu não sou o que gostaria de ser e o mundo não é aquilo de que eu gostaria que fosse. Ah, eu poderia voltar agora mesmo à vida, mas esse lugar fúnebre está mais calmo. O mundo é agitado lá fora. Por enquanto eu morri. Mas também não quero morrer para sempre. Morrer dói, assim como viver.
Olhe para você. Você já se perguntou o que está fazendo de si? Não? É porque ainda está vivo. Depois que morrer e enxergar as coisas do outro lado começará a se questionar. E quando se começa o questionamento é porque não estamos bem. Eu sei, existem dores que escondemos de nós e só depois que se morre é que as percebemos. Eu morri para ontem, para hoje e para agora. Amanhã talvez eu viva. Ou eu dê à luz. E, nesse caso, eu estaria sendo responsável por algo ou alguém que conhecerá a vida e a morte: é muita responsabilidade. Por uma questão de segundos, estamos condenados, pois a vida é sempre um risco: o de morrer.
Eu conheci uma mulher que a chamavam de feia e por isso diziam que ela havia morrido e tinham se esquecido de enterrá-la. Como os mortos podem se atrever a julgar outros mortos? Uns se sentem mais superiores porque não estão em baixo de sete palmos de terra. Mas são tolos, porque também estão mortos. E são os piores mortos, assim como eu: aqueles que morrem e continuam vivos.
Até escrever é uma forma de morrer: por definhamento. Escreve-se tanto que se acaba a vida. É uma drenagem da vitalidade. Sim, é preciso também drenar a vida, porque viver demais é sufocante. Felicidade é preciso beber aos goles moderados, do contrário morrer-se engasgado. Por isso é preciso morrer para viver. Viver é um pote sem fundo que nunca se enche. A morte é um pote com fundo. É preciso morrer para encher o pote. Depois, cansa-se do líquido e quer-se viver novamente: de volta ao pote sem fundo. E depois se morre e depois se vive.
Nem pote para encher eu tenho. Eu acho que agora eu já estou num certo ponto que me situo entre a vida e a morte. E ninguém nunca esteve entre a vida e a morte: já se esteve à beira da morte, o que é diferente. Eu estou num estado do que já não é mais coisa morta nem coisa viva: ser inanimado, mas de existência própria. Será que isso é terrível e seria a dor maior do mundo: não viver nem morrer? Eu já não sei, porque se chega a um ponto em que não há mais vida nem morte: existe-se. E tudo existe. Até o que não se existe passa a se existir pelo simples fato de se falar na coisa: as palavras fazem o ser.
Isso já é suficiente, eu suponho. Preciso me definir: eu morri. Mas é temporário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário